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O Caso “Cavalo Marinho 1” e os deveres de compliance

Publicado em 29/08/2017, às 20h28   Ilana Martins e Brenno Cavalcanti


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Na manhã de hoje (29.08.2017), Zé Eduardo – em programa da Rádio Metrópole – entrevistou o Dr. Manoel Pinto (nobre colega advogado que representa os interesses da CL Transportes, empresa responsável pela embarcação Cavalo Marinho 1, envolvida no trágico acidente que vitimou 19 pessoas no dia 24.08.2017). O âncora formulou questionamento pertinente e que, decerto, permeia o senso comum: o que teriam feito os administradores da CL Transportes de modo a evitar acidentes como o ocorrido?

É de se antecipar, pois, que o objetivo do presente artigo não é fazer juízo de valor sobre o ocorrido (sobretudo por duas razões: assume-se desconhecer o teor de eventuais autos que tratem do caso e em decorrência e respeito aos advogados constituídos que já conduzem, competentemente, decerto, o feito), tampouco se atribuirá, aqui, responsabilidade a quem quer que seja e de qualquer natureza. A pretensão com o presente ensaio cinge-se a abordar tema de relevo no ambiente jurídico moderno, que toca a dúvida levantada pelo entrevistador. A contribuição para o trágico evento – em especial, a sua evitabilidade – corresponde não apenas à dúvida pontual do entrevistador, mas, certamente, à indagação que todos devem estar fazendo-se. É inerente ao ser humano a busca por respostas e, igualmente, por eventuais responsáveis para situações como esta e, no cenário atual, aborda-se o assunto com o seguinte tema: os deveres de compliance.

O termo compliance, sobretudo após a deflagração da Operação Lava Jato e a celebração de diversos Acordos de Leniência por parte de grandes empresas envolvidas em escândalos de corrupção, ganhou notoriedade e tornou-se manchete no meio jurídico. Advindo do verbo anglo-saxão “to comply”, que significa – em tradução livre – estar de acordo, ou, basicamente, cumprir, o compliance remonta ao dever de colocar-se em conformidade com as imposições legais, ou seja, cumprir o que a lei determina. A mera tradução do termo, contudo, mostra-se  banal e rasa, pois o instituto apresenta carga significativa muito mais ampla.

A bem da verdade, o compliance simboliza, talvez, a mais representativa mudança de paradigma na conjuntura jurídica brasileira do final do século XX e início século XXI, que acompanha tendência internacional. Isso porque, o Estado que outrora inspirou o Leviatã de Hobbes e o contrato civil de Rousseau, perpassou pelo liberalismo pleno de Adam Smith e, nos tempos modernos, aparenta buscar o Estado Regulador, que se apresenta como o meio termo entre o intervencionismo público extremo e a autonomia privada plena. Na experiência tupiniquim, não experimentamos o liberalismo pleno, mas, ao longo da nossa história, pudemos observar a oscilação entre períodos extremamente intervencionistas, a exemplo da chamada “Era Vargas” (1930-1945, mas, especialmente, durante o Estado Novo, que compreendeu o período entre 1937-1945) e os anos de chumbo da Ditadura Militar (1964-1985), sucedidos por períodos mais liberais, como o período mais recente de redemocratização do país, sobretudo no governo FHC. Deste modo, possivelmente em decorrência de não termos experimentado a autorregulação plena do mercado, a “Era do compliance” insere-se no contexto jurídico nacional muito mais em reflexo da tendência internacional do que necessidade interna.

No Brasil, o tema começa a ganhar notoriedade no cenário jurídico após a promulgação da Lei de Lavagem de Capitais, em 1998, na qual, por força de compromissos internacionais, foram positivadas obrigações, a alguns particulares de setores estratégicos da economia, utilizados para a prática deste crime, de auxiliar o Estado na política de prevenção ao delito.

Apenas em 2013, contudo, com a promulgação da Lei Anticorrupção, também conhecida como a Lei da Empresa Limpa, o compliance ganhou as discussões  do cenário nacional, tendo em vista o impacto desta lei, bem como as consequências, para algumas pessoas jurídicas, dos fatos investigados pela Lava Jato. A Lei Anticorrupção também é fruto de alguns compromissos brasileiros assumidos internacionalmente no combate à corrupção, a exemplo da Convenção de Mérida, conhecida como Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, havida em 2003.

Além da Lei de Lavagem de Capitais e da Lei Anticorrupção, o compliance também é realidade no cenário brasileiro em outras áreas, embora não com tamanho frisson, a exemplo de segurança do trabalho, de consumidores e Direito da Concorrência.

Feitas estas breves considerações, é possível compreender, mais adequadamente,  o compliance. Para além do mero compromisso em estar de acordo com a lei (ou fazê-la cumprir), o termo representa uma guinada no paradigma que orienta o Estado,  que não mais busca a assunção de posturas extremas de intervencionismo ou liberalismo, pura e simplesmente. No formato atual, o Estado passa a ser compreendido como um Estado Regulador, que adota a premissa de rule at distance, mais conhecida como “autorregulação regulada” dos particulares. Em outros termos, o Estado, atualmente, estimula ou, até mesmo, obriga os entes privados coletivos a se organizarem internamente para criar uma estrutura de atuação apta a cumprir a lei e, em alguns casos, apta a realizar funções tipicamente estatais, a exemplo dos atos de investigação e prevenção ao crime, e, especificamente, à corrupção . Caberá ao Ente estatal, nesta nova conformação, estabelecer as regras de regulação dos  particulares e verificar o cumprimento destas, sem, contudo, assumir toda a cadeia dos atos.

Nesta realidade que se apresenta no horizonte, o Estado, reconhecendo a hipossuficiência para tratar de muitas das funções que tentou assumir, notadamente a sua prejudicada aparelhagem investigativa, bem como rompendo a equivocada concepção de Estado onipresente (uma vez que é assumidamente impossível a identificação de absolutamente todos os atos infracionais), delega ao sujeito privado o compromisso de contribuir com algumas das suas finalidades clássicas. Uma delegação, em muitos casos, impositiva (“autorregulação regulada mandatória”), uma vez que aqueles que não se adequem à nova realidade, poderão sofrer severas sanções – de cunho administrativo ou mesmo penal.

Eis, portanto, a contemporaneidade do questionamento de Zé Eduardo. Ao indagar a respeito do que teria sido feito de modo a repelir o acidente na costa baiana, intuitivamente está-se relacionando ao novo paradigma que se apresenta. Este compromisso que passa a ser esperado e, em muitos casos, imposto ao particular – o qual, agora, deve seguir o brocardo da “mulher de César”, que não bastava ser honesta, mas parecer honesta – é uma tendência incontornável e implacável.

No específico caso do trágico acidente, cumpre dizer que não se trata – ao que nos consta – de incidência da Lei Anticorrupção, uma vez que não se tem conhecimento de vínculo com práticas desta natureza. Diante, contudo, da amplitude compreendida no termo compliance, lido como a demonstração do ente particular de se autorregular internamente para cumprir com as normas e, sobretudo, para fiscalizar a licitude das suas próprias atividades – tal qual o faria o estado de polícia – inegável que o caso concreto deságua em suas raias.

Cumpre repisar que se desconhece, confessadamente, o teor dos autos (uma vez que se encontram sob a batuta do respeitável advogado entrevistado), bem como afasta-se qualquer pretensão de atribuir responsabilidade a quem quer que seja. Pretende-se, tão-só, utilizar o caso concreto para relacioná-lo a este novo instituto que se apresenta perante o Direito Brasileiro e que poderia auxiliar na prevenção de situações como estas.

Deste modo, em casos como estes, tanto o ente público – com seus órgãos de fiscalização, a exemplo da Capitania dos Portos, AGERBA ou policiamento de modo geral, ou mesmo por força de ser obrigado a assegurar estrutura adequada para a operação – e, igualmente, o particular devem demonstrar que assumiam práticas que coibiam a ocorrência de fatalidades como esta.

No âmbito do Setor Público, dever-se-ia demonstrar o cumprimento de suas funções de regulação e de fiscalização da atuação privada. A título ilustrativo, cabe, ao ente público, estabelecer regras para a navegação; demonstrar a realização de auditoria e fiscalização regular nas embarcações; fornecer estrutura portuária adequada à operação, (de modo a garantir a segurança dos passageiros, tripulantes, banhistas e população em geral); disponibilizar policiamento (salva-vidas, por exemplo) capaz de atender a alguma situação de emergência; bem como oferecer serviço de informação idôneo e moderno (este por parte da Marinha), que permitam a tomada de decisões mais acuradas pelos operadores da travessia.

O particular, por sua vez, pode demonstrar que promove a sua autorregulação, em consonância com a regulamentação estatal, com as seguintes diligências: demonstrar a adequação das embarcações para fazer a travessia, com a inspeção periódica da sua parte, independente do setor público e de acordo com o disposto em normas técnicas; disponibilizar, em atenção ao que a lei lhe impõe, eventuais instrumentos de segurança aos passageiros; demonstrar a capacitação da sua equipe de funcionários, sobretudo em como lidar com situações de emergência; exercer o controle e obedecer o limite de passageiros suportado pela embarcação, dentre outros.

É cediço que o Código de Defesa do Consumidor prevê responsabilidade objetiva a situações como esta, que deve ser perquirida no bojo de eventuais demandas judiciais a serem propostas, o que significa dizer que, independentemente da observância de dolo ou culpa (marcos definidores da responsabilidade subjetiva), pode haver o reconhecimento da responsabilidade civil e, por conseguinte, eventual condenação ao pagamento de indenização. Todavia, a atenção e a obediência aos deveres de compliance, decerto, são capazes de reduzir o quantum a ser adotado pelo julgador do caso, uma vez que demonstra o absoluto compromisso do particular em repelir eventos desta natureza.

No âmbito penal, especificamente, como apenas é concebida a responsabilização por dolo ou culpa (subjetiva, portanto), o cumprimento destes mesmos deveres de compliance tem ainda maior repercussão e importância, tornando mitigada a sustentação de existência de um dos elementos constitutivos da responsabilidade subjetiva.

Isso porque, enquanto o dolo é definido como vontade livre e consciente voltada à prática de uma conduta com resultado determinado (ou assunção do risco de produzi-lo), concebe-se a culpa como violação ao dever de cuidado, compreendida no ordenamento jurídico brasileiro de três formas: imprudência; imperícia e negligência. Destarte, com a devida atenção aos deveres de compliance tornar-se-ia incongruente afirmar haver vontade e consciência para alcançar um resultado (já que tais deveres são diametralmente opostos à ocorrência do risco/resultado), bem como seria incompatível dizerem-se violados os deveres de cuidado (por imprudência, imperícia ou negligência), quando, justamente eles são atendidos com os deveres de compliance.

Nesta toada, igualmente fragilizada seria a aplicação da teoria da cegueira deliberada (willful blindness) – quando se perquire responsabilidade penal independentemente de demonstração de conhecimento efetivo do ilícito por parte do agente. Noutras palavras, a cegueira deliberada dar-se-ia quando o agente, em situação que deveria manter-se atento para evitar a prática de eventual crime, deliberadamente ignora a realidade no objetivo de não se ver vinculado ao delito, apesar de consentir com o seu resultado. Para a sua aplicação, imperiosa a presença de três requisitos: suspeita justificada da ocorrência do ilícito (ou seja, desconfiança efetiva da possibilidade de advento do evento criminoso); disponibilidade de informação da possibilidade do delito e; ter o agente motivo para manter-se ignorante quanto a tal prática. Ou seja, caso todos os indicativos levassem o sujeito a suspeitar do advento do resultado lesivo, à luz da mencionada teoria, poder-se-ia buscar sua responsabilização penal.

Ocorre que, como já se pode concluir, o atendimento aos deveres de compliance é a outra face da moeda da cegueira deliberada: representa a atenção plena do agente aos riscos que pode ocasionar e a sua atuação na contramão da materialização destes riscos.

Portanto, seja no âmbito do dolo ou da culpa, a responsabilização criminal restaria consideravelmente reduzida – senão, afastada em sua integralidade – para o caso do exercício efetivo da conformidade da pessoa jurídica aos limites legais.

Certo é que, numa primeira e perfunctória análise, o fato concreto apresenta-se como fatalidade a todos os envolvidos – em especial, às vítimas sobreviventes (pela experiência traumática) e familiares daqueles que se foram tão repentinamente. Serve de alerta, contudo, para a forma de se fazerem negócios nos tempos atuais: demonstrando-se o compromisso da pessoa jurídica em adequar-se ao ordenamento jurídico e, em especial, reduzir os riscos envolvidos com sua operação e, ao Estado, o seu dever em promover a autorregulação regulada. Desta forma, tragédias como a amargamente experimentada pela população baiana tornar-se-ão menos frequentes, bem como o empresariado demonstrará que, por mais que se tente, algumas situações fogem ao controle.  A elas, especificamente, ao menos não se buscará responsável, em qualquer esfera, reconhecendo-se a incapacidade humana diante de eventos da natureza.  

Ilana é Doutora em Direito Penal pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP); Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; Pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Universidad Castilla-La Mancha (Toledo, Espanha); Pós-graduada em Direito Penal Econômico pelo IBCCRIM; Formada no curso de Governança Corporativa e Compliance no Insper/SP; Professora Adjunta de Direito Penal da Universidade Salvador (UNIFACS); Advogada Criminalista.

Brenno é mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; Pós Graduado em Ciências Criminais pelo Juspodivm; Formado no curso de Governança Corporativa e Compliance no Insper/SP; Advogado Criminalista. 

Classificação Indicativa: Livre

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