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Santo Amaro: Após 300 mortes, Plubum descumpre ordens da Justiça e atua no país

Publicado em 17/07/2017, às 05h50   Adelia Felix


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Após a morte de pelo menos 300 trabalhadores, a Companhia Brasileira de Chumbo (COBRAC), que espalhou o metal pelo município de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, continua impune e descumprindo decisões da Justiça. Enquanto isso, a população sofre há mais de 30 anos com as consequências da poluição e a contaminação. Cerca de 500 mil toneladas de apara de chumbo contaminaram as pessoas, as ruas, o rio Subaé e o estuário da baía de Todos os Santos. 

“É um número altíssimo. É assustador. Essas pessoas não tiveram nenhum amparo. Nós estamos com uma ação coletiva que engloba ex-trabalhadores, filhos e viúvas no fórum de Santo Amaro. São 2.500 pessoas esperando por Justiça”, revela ao BNews, o presidente da Associação das Vítimas da Contaminação por Chumbo, Cádmio, Mercúrio e Outros Elementos (Avicca), Adailson Moura, .

Para reportagem, ele afirma que a mudança de juízes no município prejudica o andamento do processo. “É o quarto juiz que é trocado e o processo segue parado. Sete anos e nunca houve nenhuma sentença. Se fosse favorável seria ótimo. Se não fosse, entraríamos com recurso. O processo está sendo digitalizado, então está fora de pauta. Seguimos esperando”, conta.

A COBRAC, subsidiária da empresa francesa Penarroya Oxide S.A., com sede na cidade Rieux, na França, iniciou suas atividades no município baiano em 1960.  Em dezembro de 1993, já com o nome de Companhia Plumbum Mineração e Metalurgia Ltda. - Grupo Trevo, a empresa encerrou as atividades na região, mas segue atuando no Brasil. 

“Têm várias empresas no país. Foi Plubum, Grupo Trevo, Trevisa, Iara Fertilizantes, hoje é detentor de um banco, detentor de uma empresa ambiental, olha que ironia. A empresa faz o papel que muitas outras fazem, mandam acionar a Justiça. Eles sabem que a Justiça é lenta, e que os empresários são sempre favorecidos”, argumenta. 

O chumbo integra grupo de elementos químicos conhecidos como metais pesados, de grande força tóxica, que produzem doenças devastadoras e mortes em seres vivos. Apesar disso, segundo o presidente da Avicca, a contaminação por chumbo não é reconhecida como doença ocupacional.

“Eu não vejo nada no SUS [Sistema Único de Saúde] que complemente algo para os ex-trabalhadores. Você tem a talidomida, você tem o césio de Goiânia, e entre outros. Todos são vítimas e têm seus direitos. Não estou desmerecendo ninguém. Hoje, temos um bocado de trabalhadores morrendo de medo de perder a sua aposentadoria. O chumbo não é reconhecido ainda como doença ocupacional. Se já tivesse sido reconhecido, todos estariam caracterizados. Nós estamos vegetando”, reclama.

A realidade vivida por ex-trabalhadores é cruel. Diante do descaso, uns já tentaram o suicídio, outros mergulham no alcoolismo. Alguns temem perder até o pouco benefício que recebem após ter dedicado anos de sua vida à fábrica. É o caso de Manoel Batista, 63 anos, que depois de trabalhar por 12 anos na carga e descarga de chumbo, perdeu parte da visão e dos movimentos do lado esquerdo do corpo.

“Quando me contaminaram me botaram na portaria. Eu estava com 89 miligramas de chumbo no organismo. Perdi a visão direita, a esquerda foi operada e só tenho 20% dela. Tomo vários remédios diariamente. O lado esquerdo do meu corpo está atrofiando, não consigo segurar as coisas direito, estou debilitado. Eu queria trabalhar, mas não posso. O INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] está me chamando para fazer uma perícia, não acredita que estou doente. Eles querem cortar o benefício, um salário mínimo que recebo”, relata.

No organismo humano, a acumulação do metal pode afetar severamente as funções cerebrais, sangue, rins, sistema digestivo e reprodutor, havendo a possibilidade de mutações genéticas em descendentes, como ocorreu na cidade.

“Têm as vítimas diretas, que são os trabalhadores, e têm as vítimas indiretas, os familiares. A contaminação é hereditária. Se uma mulher tiver uma taxa de 40 miligramas, e ela tiver um bebê, a criança já nasce contaminada. Aqui tiveram bebês que nasceram natimortos. São imagens terríveis. Já fizemos parâmetros de crianças que nasceram de cinco anos para cá e algumas nasceram contaminadas. Para piorar a situação, constantemente as ruas estão sendo abertas, e esse material fica exposto novamente e começa a circular. O pessoal que está mexendo na manutenção tem contato. O risco de contaminação é alto porque não houve a retirada da escória”, explica Adailson.

A dona de casa Rita Ribeiro, 66 anos, assistiu seu marido, que trabalhou na fábrica durante 25 anos, morrer aos poucos. Hoje, mora de aluguel com um neto e um filho, e recebe uma pensão de R$ 720. 

“Primeiro ele trabalhou na boca do forno, ficou doente e foi afastado por um ano, retornando como vigilante. Após os exames, foi comprovado que estava contaminado. Foi difícil. É difícil. Até hoje não tenho casa, não tive condições de comprar. Essa pensão eu gasto com água, luz, telefone, gás e os remédios porque nem sempre a gente acha no posto. Meu menino ficou com problema de coração. Não consegue trabalhar. A justiça é lenta. Não tem justiça. Só injustiça”, lamenta.

Vítimas desamparadas
Para nossa reportagem, o representante dos trabalhadores e familiares contaminados por metais pesados na cidade argumenta que as vítimas não têm nenhum amparo das autoridades públicas.

“Tanto o governo estadual, quanto a União, ainda não assimilaram que essa grave contaminação do chumbo é responsabilidade deles. Não vi comprometimento do governo estadual. O governador assumiu a responsabilidade, mas a cidade de Santo Amaro para ele não existe. Não temos nenhuma secretaria do Estado cobrindo esse grave problema. Nem a Secretaria dos Direitos Humanos, que foi a secretaria que sempre procuramos”, conta.

Segundo Adailson Moura, o antigo prefeito da cidade, Ricardo Machado (PT), fez promessas, mas não cumpriu. Já o atual prefeito, Flaviano (DEM), se reuniu com ex-trabalhadores em duas oportunidades. A nova gestão pretende finalmente tirar do papel o centro de referência para atender aos ex-funcionários e outras vítimas de metais pesados.

“Estamos esperando agora que com esse prefeito não passe em branco. O centro de referência não iria cuidar só das vítimas do chumbo, temos o pessoal da usina, que tem a contaminação por chorume, o pessoal da redondeza de Cachoeira, o pessoal que faz o fumo de corda, nós temos o pessoal de Terra Nova e Candeias. Seria um centro de tratamento para pessoas vítimas de contaminação por metais pesados, que são o chumbo, cádmio, zinco e mercúrio”, detalha. Ele acredita que até outubro deste ano o projeto esteja pronto.

Ainda em conversa, ele lembra que a situação foi discutida em Brasília com o deputado Roberto de Lucena (PV-SP), há uns seis anos. “Fizemos audiência pública, mas até o momento nada foi feito”. Na Assembleia Legislativa da Bahia (AL-BA) também aconteceu uma audiência pública, proposta pelo deputado Mário Negromonte Júnior (PP), que hoje ocupa uma cadeira na Câmara dos Deputados. “Ele se comprometeu comigo que a partir daquela data ele estava à frente desse processo. Possa ser que eu tenha uma parcela de culpa, pois não voltei a cobrar, mas até hoje nada mudou desde aquele debate”.

Acesso à antiga fábrica
A reportagem esteve na entrada principal da antiga fábrica, que não foi completamente isolada. Um vigia impede a entrada de pessoas no local. Atrás de um portão enferrujado, placas sinalizam que a área é particular e o acesso é proibido, outra, pintada após ação da Avicca, indica que há risco de exposição a materiais tóxicos.

“Alunos entravam aqui para fazer matéria. Têm árvores frutíferas, e as crianças entram sem qualquer dificuldade. Hoje tem sistema de monitoramento do ar. Estão levantando uma cerca, mas essa cerca não impede ninguém de entrar. Quando chove, o material vai para o lençol freático e desce para o Rio Subaé. A lagoa está praticamente cheia, transbordando, e tem gente que ainda pesca lá”, relata Adilson.

Os resíduos da produção eram descartados de maneira inadequada, o que transformou Santo Amaro em uma das cidades mais poluídas por chumbo no mundo e com vários ecossistemas degradados, segundo estudos da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e outras instituições nacionais e internacionais.

MPF requer que mineradora pague R$ 59 milhões por danos 
Em março deste ano, o Ministério Público Federal na Bahia (MPF-BA) requereu à Justiça Federal que a mineradora Plumbum Comércio e Representações de Produtos Minerais e Industriais fosse obrigada a pagar uma multa no valor de mais de R$ 59 milhões, ajuizada em 2013. 

Conforme nova decisão liminar, a empresa foi obrigada a sinalizar os locais que foram contaminados por cádmio e chumbo. A reportagem esteve na cidade e não encontrou nenhuma sinalização.

A Justiça definiu multa diária de R$ 5 mil por dia de atraso, que foi aumentada para R$ 10 mil diários, por deliberação judicial publicada em maio de 2012, quando foi concedido novo prazo, de 15 dias, para a confirmação do cumprimento das obrigações. Em 2014, a Justiça publicou a sentença do processo, em que foi confirmada a liminar, mas a multa nunca foi paga.

A Justiça Federal acolheu os pedidos formulados pelo Ministério Público Federal na ação civil pública proposta em 2002, contra a empresa com o objetivo de reparar os danos ambientais e sociais causados ao município.

Outro lado
A reportagem entrou em contato com o governo e a prefeitura de Santo Amaro, mas até o fechamento desta reportagem não obteve nenhum retorno. A empresa, com sede em São Paulo, também foi procurada, mas afirmou que não se manifestaria sobre o assunto.

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