Especial

Familiares de vítimas e sobreviventes de tragédia em Mar Grande ainda esperam por respostas: "Nada mudou"

Adenilson Nunes/BNews
Tragédia com a lancha Cavalo Marinho completa um ano nesta sexta-feira (24); acidente deixou 19 mortos e dezenas de feridos  |   Bnews - Divulgação Adenilson Nunes/BNews

Publicado em 24/08/2018, às 06h30   Diego Vieira e Brenda Ferreira


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Dia 24 de agosto de 2017. O tempo nublado contemplava mais uma manhã no município de Vera Cruz, na ilha de Itaparica. Como de rotina, centenas de pessoas, que deixam a localidade por meio das lanchas com destino a Salvador, se preparam para as tarefas diárias, seja o trabalho, a faculdade ou a consulta médica na capital baiana.  

Por volta das 6h30 daquele dia, 120 passageiros atravessam a ponte do terminal marítimo em direção à embarcação Cavalo Marinho I. Antes do início da trajeto, a conversa entre as pessoas que também costumavam fazer a travessia no mesmo horário abria espaço para o barulho das águas do mar. No entanto, aquela calmaria do local foi interrompida minutos após a partida, mudando drasticamente a vida de crianças, jovens e idosos. 

A lancha Cavalo Marinho I virou cerca de 10 minutos após deixar o Terminal Marítimo de Mar Grande. A embarcação estava a aproximadamente 200 metros da costa quando o acidente aconteceu. Dezenove pessoas morreram, sendo 13 mulheres, três homens e três crianças: Davi Gabriel Monteiro Coutinho, 6 meses, Darlan Queiroz Reis Julião, 2 anos, Dulciana dos Santos Queiroz, mãe de Darlan, 38 anos, Dulcelina Machado dos Santos, avó de Darlan, 59 anos, Laís Pita Trindade, 20 anos, Taís Medeiros Ramos de Sales, 32 anos, Thiago Henrique de Melo Muniz Barreto, 35 anos, Antônio de Jesus Souza, 67 anos, Ivanilde Gomes da Silva, 70 anos, Isnaildes de Oliveira Lima, 48 anos, Lucas Medeiros Leão, 2 anos, Rita dos Santos, 54 anos, Rosemeire Novaes Carneiro da Costa, 49 anos, Sandra C. Lima dos Santos, 40 anos, Lindinalva Moreira da Silva, 50 anos, Edilene Oliveira dos Santos, 43 anos, Edileuza Reis da Conceição, 53 anos, Alessandra Bonfim dos Santos, 36 anos e Salvador Souza Santos, 68 anos.

Nesta sexta-feira (24), dia em que a tragédia completa um ano, o BNews traz uma matéria especial sobre o caso. Em conversa com a reportagem, familiares das vítimas e sobreviventes relembraram os momentos de pânico durante o naufrágio e desabafaram sobre a espera de Justiça.

Ana Paula Monteiro, 29 anos –  sobrevivente e mãe de Davi Coutinho

Difícil não lembrar da imagem de um socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) segurando um bebê em seus braços. Davi Gabriel Monteiro Coutinho, de 6 meses, estava na embarcação e morreu após duas paradas cardiorrespiratória. 

Diagnosticado com uma micose, Davi estava acompanhado da mãe, Ana Paula Monteiro. Ao BNews, a confeiteira contou que aquele dia seria a última consulta médica do filho em Salvador. “Como eu tinha notado uma certa melhora eu resolvi levar ele no médico para suspender o tratamento. Naquele dia, eu estava indo lá no Martagão Gesteira para um dermatologista avaliar o meu pequeno”, disse. Além de Davi, ela estava acompanhada da mãe e da filha, de cinco anos, que conseguiram sobreviver. 

Acostumada a fazer a travessia com frequência, ela conta que ao chegar no terminal marítimo, notou algo diferente. “Logo quando chegamos, eu percebi que a lancha estava muito lotada e a embarcação era muito pequena. Cheguei até a comentar com a minha mãe: ‘mãe está muito estranho, essa lancha tem muita gente’. Não tinha nem lugar para a gente sentar”, relatou. Emocionada, ela relembra o momento em que percebeu que algo de errado estava acontecendo. 

“De repente escutamos um estalo, parecendo que alguma coisa estava quebrando. Foi aí que a lancha baixou. Depois olhei pra cima e vi as pessoas tentando se segurar de qualquer jeito para não cair.  As pessoas caiam sobre as outras. Inclusive uma delas, caiu em cima do meu filho. Depois disso, a lancha virou de vez. Eu tentei segurar meu filho pela roupa dele, mas eu não consegui. O mar levou o meu filho”. 

Em meio ao cenário trágico, Ana Paula conta que no momento só conseguia pensar nos filhos e em sua mãe. "Eu engolia muita água e ao mesmo tempo eu gritava, mas os gritos eram porque eu sabia que os meus filhos estavam ali, eu sabia que a minha mãe também estava ali. Quando eu consegui subir, eu vi a lancha virada, muitas pessoas em cima dos escombros, muita gente chorando, senhoras sem roupa, pessoas sangrando. Depois de alguns minutos, a minha mãe apareceu em um dos botes, mas os meus filhos, eu continuava sem vê-los". 

Ainda sem notícias dos filhos, a confeiteira recebeu os primeiros socorros e foi encaminhada para a UPA. Após receber o atendimento na unidade saúde, Ana Paula foi levada para a casa da avó. Foi lá que ela viu a última imagem do filho ainda com vida.

“Meu tio recebeu uma mensagem com a foto de minha filha, informando que tinham encontrado ela, mas o meu filho eu ainda continuava sem saber de nada. Quando cheguei na casa de minha avó, fiquei acompanhando pela TV.  Quando eu vi a imagem do socorrista com um bebê, eu sabia que era meu filho, eu conheci pela cabecinha dele e o capote amarelo que estava usando”. 

A dor e tristeza após confirmação da morte da Davi abriram um rápido espaço para a sensação de alívio no reencontro com a filha. “Quando eu vi a minha filha, eu a abracei e agradeci muito a Deus por trazê-la de volta, porque na minha cabeça os dois estavam mortos”, contou.

Um ano após o ocorrido, Ana Paula denuncia as condições das embarcações que fazem a travessia. "Nada mudou. Tudo continua do mesmo jeito. As lanchas continuam rodando com as irregularidades, os responsáveis continuam exercendo as suas funções. Enquanto eles destruíram a minha família, tiraram um pedaço do meu coração. Eu espero que as melhorias aconteçam para que outras famílias não sofram o que estamos sofrendo hoje", disse a confeiteira, que depois da tragédia prefere evitar o contato com o mar.

“Não consigo nem olhar para o terminal marítimo. Às vezes, preciso ir lá embaixo, mas quando eu passo é com a cabeça virada. Eu não consigo encarar o mar”. 

Dirceu Lima, 44 anos – sobrevivente

O motorista Dirceu Lima é um dos 105 sobreviventes do acidente. No dia, ele estava indo visitar o pai em Salvador, que estava com câncer. Apesar do mau tempo e das “condições precárias das lanchas”, ele conta que não sentia medo em fazer a travessia. “No dia ventava muito, mas como tinha quase 50 anos que não havia um tipo de tragédia como essa, era natural que fizéssemos a travessia mesmo com as condições do momento”, disse. Para Dirceu, uma atitude, que poderia ser classificada como perigosa, o salvou.

“No momento que a lancha começou a balançar demais, eu me antecipei e pulei no mar junto com um colega. Mas, algumas pessoas não esperavam por isso e nesse mesmo instante a lancha virou do meu lado. Cheguei a ficar com a minha perna presa nas engrenagens dos bancos, mas consegui sair e nadei até um bote que deveria ter umas 15 pessoas”.

Apesar do desespero, ele conta que ainda conseguiu salvar outras pessoas. “Juntamos um grupo de homens que psicologicamente não se abalaram tanto. Conseguimos tirar uma senhora e um senhor de 80 anos e colocamos eles no bote”, disse.

Condutor de ambulâncias da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Mar Grande, Dirceu foi umas das vítimas atendidas no local. Ele diz que nunca imaginou chegar ao posto de trabalho naquelas circunstâncias: “Qualquer um pode ser atendido em algum setor emergencial, mas não esperava chegar aqui daquela forma. Eu consegui sair rapidamente do mar, mas teve botes que chegaram a ficar quase duas horas e meia à deriva. Eu cheguei na UPA andando. Quando eu vi o desespero de tantas vítimas que estavam piores do que eu e tantas pessoas mortas, eu achei melhor dar a minha vaga para aqueles que estavam em pior situação”, relatou.

Após um ano, o motorista também aguarda respostas. Em um apelo feito à reportagem, ele pede a condenação dos responsáveis. 

“Eu gostaria que o Estado fosse um pouco mais atencioso conosco. Espero que isso seja resolvido e que eles tomem consciência de que as pessoas não têm culpa de nada, estávamos fazendo as nossas tarefas naturalmente e não tivemos culpa nenhuma. Eles precisam tomar as decisões deles e enxergar que somos inocentes. O Estado em si e todos os responsáveis devem pagar por isso”.

Jucimeire Santana, 47 anos –  sobrevivente

Quem também viu tudo de perto foi a funcionária pública Jucimeire Santana. Traumatizada e com sequelas psicológicas, ela chegou a ficar sete dias internada após o acidente. “Eu engoli muita água com óleo e contraí pneumonia. Fiquei uma semana no Hospital Geral de Itaparica. Ninguém foi lá ver a gente para saber como estávamos, a não ser amigos e familiares”, disse.

Segundo Jucimeire, as imagens da tragédia ainda permanecem vivas em sua memória. “A lancha inclinou para um lado só. Eu quase morri afogada, porque eu não estava conseguindo subir. Minha barriga estava cheia de água e as pessoas me puxavam para baixo. Foi horrível”, relembrou. 

Com medo, a funcionária pública chegou a ficar seis meses sem fazer a travessia. Apesar de ter voltado a viajar através das lanchas, ela diz que ainda se sente apreensiva.

“Confesso que preciso ter muita força para fazer a travessia. Às vezes, chego a pensar que ainda não estou pronta para entrar na lancha, porque qualquer movimento que a embarcação faz, eu fico apavorada, começo a chorar. Mas eu preciso atravessar por necessidade”.

Para Jucimeire, a troca do tipo de embarcação iria garantir a segurança dos usuários, que assim como ela, precisam fazer a travessia diariamente. “Estou vendo muita impunidade e imprudência. Não tem mudança alguma no serviço. Na verdade, essas lanchas não têm condições alguma de fazer a travessia. Já deveriam ter mudado os tipos de embarcações. Porque a qualquer momento isso pode acontecer de novo. Não vamos esperar que aconteça outra tragédia para tomarem uma providência.

Joisy Elem Silva, 21 anos - sobrevivente

Estudante do curso de direito em uma faculdade de Salvador, Joisy Elem Silva precisa fazer a travessia todos os dias. No dia da tragédia, ela conta que, por pouco, não embarcou na lancha Cavalo Marinho I.

“O dia anterior ao acidente, eu passei a noite em claro. Quando deu o meu horário e o celular despertou, eu pensei: ‘não vou pegar essa lancha de 6h30, vou deixar para pegar a de 7h’, mas como eu já estava acordada, eu decidi me arrumar e sair".

Habituada com os constantes balanços da embarcação, Joisy diz que demorou a perceber que a lancha estava virando. “Aquilo ali era algo natural e eu já estava acostumada com a viagem, então não era algo que me assustasse. Eu estava com os olhos fechados e lembro que, quando abri, eu vi as pessoas do lado esquerdo sumindo na água. Aí, quando a lancha virou, eu desci junto com todo mundo”.

Já debaixo d’água, a estudante relata que conseguiu dar um “impulso com os pés em uma das partes da lancha e consegui subir”. Após entrar em um dos botes, onde estavam as vítimas, Joisy ainda salvou a irmã de Davi, filha de Ana Paula. “Eu lembro que antes do acidente, ela estava sentada em minha frente entre duas senhoras. A irmãzinha de Davi estava boiando e eu consegui pegá-la. Quando eu vi as pessoas gritando, chorando, eu custava a acreditar naquilo. Foi muito triste. Nunca imaginei passar por aquilo”, lembra.

Ainda com traumas, ela chegou a embarcar nas lanchas após o acidente, mas desistiu depois que passou por um susto. A estudante estava na lancha Costa do Sol 2, que foi atingida por um princípio de incêndio, quase dois meses após a tragédia com a Cavalo Marinho. “Foi a primeira vez depois do acidente que peguei a lancha. Nesse dia, eu tinha perdido o ferry e tinha prova na faculdade e o tempo estava bom. Me preparei psicologicamente para pegar a lancha e passei por mais esses momentos de pânico”, contou. 

Assim como os demais sobreviventes e familiares de vítimas, a estudante cobra mudanças no sistema de transporte. 

“Espero que o serviço seja prestado de acordo com a necessidade do povo. Eles estão levando vidas, estão transportando sonhos. São famílias, adolescentes, jovens que estão indo estudar em Salvador. Por conta da negligência humana, da ganância de querer dinheiro e não investir na prestação de serviços, acabou matando 19 pessoas e deixando dezenas de pessoas vivas, mas com sequelas”. 

Ana Claudia Pita - mãe de Laís Pita

Mãe de Laís Pita Trindade, de 20 anos, que está entre os 19 mortos no naufrágio, a professora Ana Claudia Pita lembra dos últimos momentos ao lado da filha. 

“Eu sempre procuro esquecer desse dia. Ela se foi e foi uma parte da gente também. Foi horrível. Ela acordou pela manhã cheia de vida. A Laís tinha o cuidado de sair todos os dias e quando chegava na lancha, ela ligava, mas esse foi o único dia que ela não ligou”.

Ela conta que ficou sabendo do acidente através de uma colega de trabalho. “Uma amiga me ligou perguntando se os outros professores tinham chegado, porque lá na escola tem alguns professores que moram em Salvador e utilizam a lancha para chegar na ilha. Logo em seguida, ela me disse que uma lancha tinha virado. Foi aí que eu me preocupei. Em seguida, começou o alvoroço na escola e o pessoal chegou dizendo que já tinha uma quantidade de pessoas que tinha falecido e foi aí que eu perdi o chão”, relatou.

Ainda sem notícias concretas sobre o ocorrido, Ana Claudia conta que resolveu ir até Mar Grande ao lado do marido. Com a foto de Laís nas mãos e com esperanças de encontrá-la viva, a professora lembra do momento em que uma embarcação com os corpos das vítimas chegou ao terminal marítimo.

“Perguntei a um mergulhador se ele tinha alguma notícia. Ele nem olhou para a fotografia e me disse: ‘minha senhora, todos os sobreviventes já foram salvos, os que estão lá só são os mortos. Aquilo ali me acabou, bateu o desespero e eu não sabia mais o que eu estava fazendo. Já tinha perdido as esperanças. Quando eu vi o barco chegar [com os corpos] e o pai pular na água. É uma cena que eu prefiro não lembrar”.

De acordo com a professora, por conta do acidente, o marido adquiriu depressão e vive atualmente com frequentes idas ao médico. “Todo dia ele chora, está à base de muitos remédios, fazendo exames, a pressão dele não consegue baixar e é difícil, mas eu me apego a Deus, porque só ele para me dar força”, relatou.

Para Ana Claudia, as vistorias nas embarcações realizadas pela Marinha poderiam mudar o destino daquela viagem. “Estão varrendo a poeira para debaixo do tapete. Fizeram um belo portal para esconder o perigo que está ali atrás, mas só é isso? Eu espero que se faça Justiça e que se mude esse meio de transporte, porque todos estão oferecendo perigo e eles não fazem nada. Tudo continua do mesmo jeito. Hoje, sou eu e as outras 18 famílias que estamos chorando. E amanhã, quem será?”, indagou.

Classificação Indicativa: Livre

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