Economia & Mercado

A “Classe Média” e Suas Contradições

Imagem A “Classe Média” e Suas Contradições
Bnews - Divulgação

Publicado em 13/06/2018, às 13h29   Luiz Filgueiras


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No Brasil, desde as manifestações de 2013, culminando com o Golpe Institucional que levou ao impeachment da Presidente Dilma Roussef, a chamada “classe média” vem se destacando no cenário econômico-político-social. Mas, o que vem a ser a classe média? Quais são suas características, os seus atributos, as suas identidades e os seus interesses?

A identificação e o entendimento do que se denomina de classe média são sempre muito complicados; abrange um segmento social heterogêneo que, objetiva e subjetivamente, se situa numa posição social intermediária: ela não se confunde com a grande burguesia e os grandes proprietários e, nem tampouco, com a classe trabalhadora (operária) - esta também bastante heterogênea. No conjunto da classe média, podem ser observados dois segmentos bem distintos: um que se define pela propriedade e posse dos meios de produção (micro e pequenos empresários, autônomos ou conta-próprias e “profissionais liberais”); e outro constituído de vários tipos de trabalhadores assalariados (não manuais) de maior rendimento (do setor público ou privado), com diversas situações de relações de trabalho (empregados com e sem carteira assinada, terceirizados, PJ etc).

Os atributos objetivos unificadores de todos os seus segmentos se referem a um determinado nível mínimo de renda (de difícil definição) e certo grau de escolaridade (nível médio, técnico e, principalmente, superior), que conformam um modo de vida e horizonte cultural distintos dos da classe trabalhadora; além disso, há outro elemento fundamental, de caráter subjetivo, comum à classe média: o medo constante, consciente, ou não, de cair na escala social; aproximando-se da classe trabalhadora. Limitada pela competição, tendo em vista as características oligopolistas do capitalismo, a ascensão individual de seus membros, mesmo daqueles em situação mais favorável, é praticamente interditada.

No Brasil atual, o segmento assalariado da classe média tende a se aproximar da classe trabalhadora, ou mesmo reconhecer-se como tal - se identificando com os problemas típicos do trabalho assalariado: condições de trabalho, nível salarial, previdência social, acesso e melhoria da educação e da saúde, moradia e segurança. Essa tendência é mais evidente na fração desse segmento que se encontra organizada coletivamente - em sindicatos e/ou associações. Aqui a identidade de classe, e interesses, vai além do nível de renda e da escolaridade; o medo de descer na escala social é subjetivamente menor, e o Estado e as políticas públicas têm um papel importante a cumprir.

No caso do segmento da classe média de proprietários dos meios de produção (autônomos, “profissionais liberais” e micro e pequemos empresários), o medo de cair na escala social é muito forte; a grande burguesia lhe serve de espelho e a perspectiva de vir a ser igualado ao trabalhador é insuportável. O caminho para cima está interditado pela competição e hierarquia dos capitais, mas o caminho para baixo é sempre uma possibilidade: nesse segmento, “mata-se um leão todo dia”; a competição cobra um tributo permanente. O Estado, os trabalhadores e as políticas públicas são olhados com desconfiança, quando não como inimigos. O seu ideário constitui-se na redução do Estado e do seu financiamento (daí a forte resistência de pagar impostos), tendo por justificativa a má qualidade dos serviços públicos (que seus membros não usam); uma forte demanda por segurança e ordem; a defesa do empreendedorismo e da meritocracia.

A classe média, além de heterogênea economicamente, também o é politicamente: ela é suscetível de ser influenciada “à direita e à esquerda”; por discursos ideológicos que enfatizam o “livre mercado”, o empreendedorismo, a eficiência, a competição e a meritocracia (que tendem a sensibilizar mais o seu segmento de proprietários) ou por discursos que colocam em primeiro plano a cooperação, as políticas públicas, a “justiça social” e a igualdade (que sensibilizam mais sua fração de assalariados socializados pelo trabalho e organizados). 

O seu segmento proprietário, principalmente, tende a ser dirigido pelos “de cima”, ou seja, a grande burguesia (os ricos invisíveis); que o utiliza como “massa de manobra” para esconder-se e defender seus próprios interesses, estimulando-lhes preconceitos e insuflando-os contra “os de baixo”, como evidenciado no Golpe de Estado que destituiu a Presidente Dilma Roussef.

Assim, o ideário da grande burguesia é incorporado às aspirações da classe média proprietária: redução de impostos (que a grande burguesia não paga), encolhimento do Estado (nas áreas que não afetam a grande burguesia), indignação com a corrupção do Estado (mas não com a do mercado e do grande capital) e meritocracia (que passa longe dos filhos e herdeiros da grande burguesia), privatização (que engorda o patrimônio da grande burguesia), “livre mercado” (controlado pela grande burguesia oligopolista) e reforma trabalhista e da previdência (fontes de acumulação do grande capital, mas que deterioram as relações trabalhistas e sociais) etc.

Impressiona a dificuldade da classe média em perceber que seus principais interesses são, objetivamente, distintos dos interesses das classes dominantes, em particular os da grande burguesia. Esta não tem nada a ver com o país, nem mora aqui; está por aqui só para ganhar dinheiro e mandá-lo para fora. Não se identifica com o país, nem sua cultura; seus filhos não estudam no país e seus excedentes financeiros estão em paraísos fiscais.

A política econômica e as contrarreformas da grande burguesia, implementadas pelo Governo Temer, concentram renda e reduzem o mercado interno (destino dos produtos e serviços ofertados pela classe média proprietária); aumentam a desigualdade, difundindo o medo e a insegurança (sentidos fortemente pela classe média); pioram ainda mais os serviços públicos, agora ameaçando também as Universidades Públicas (que acolhem os filhos da classe média); elevam os preços dos serviços privatizados e planos de saúde ofertados por grandes oligopólios (que são utilizados pela classe média) e, agora, elevam os preços dos combustíveis para beneficiar acionistas e especuladores da Bolsa de Nova Iorque (afetando diretamente a mobilidade urbana da classe média e seu consumo).

Até quando a classe média, principalmente seu segmento proprietário, vai se deixar enganar pela grande burguesia e perceber que os trabalhadores e os pobres não são seus inimigos? Que não há possibilidade de uma “boa vida” numa sociedade escandalosamente desigual, racista e individualista? Que a sua crença na meritocracia absoluta, numa sociedade desse tipo, é uma auto-ilusão que apenas justifica a desigualdade e o seu “status superior”? Que sua indignação contra a corrupção é manipulada politicamente pela grande burguesia? Que o Estado é uma Instituição essencial do capitalismo? E, finalmente, assumir também sua parcela de responsabilidade pelos problemas do país e, portanto, deixar de ameaçar (ou de fato) ir embora do país?

Membro do Núcleo de Estudos Conjunturais da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (NEC/UFBA). Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Doutor em Teoria Econômica pela UNICAMP e Pós-Doutorado em Política Econômica pela Universidade Paris XIII. Autor do livro “História do Plano Real” (Editora Boitempo: 2000, São Paulo; última edição em 2016) e coautor do livro “Economia Política do Governo Lula” (Editora Contraponto: 2007, RJ). 

Classificação Indicativa: Livre

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