Economia & Mercado

Mercado e Estado: o cinismo da oposição ou o delírio do divórcio

Imagem Mercado e Estado: o cinismo da oposição ou o delírio do divórcio
Bnews - Divulgação

Publicado em 24/04/2018, às 16h26   Vitor Filgueiras*


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Lemos e escutamos diariamente frases como: “é preciso reduzir o Estado”, “o mercado deve ser livre para operar”, “o problema da economia é a intervenção estatal”, “o Estado não deve interferir no mercado”, “precisamos de mais mercado e menos Estado”. Prega-se que o mercado seria uma forma livre e eficiente de interação entre os indivíduos para produzir riqueza e bem-estar. No discurso, o Estado quase sempre ou mesmo necessariamente atrapalharia o funcionamento do mercado.

Em resumo, a ideia que martelam em nossas cabeças todos os dias é que a interferência do Estado no mercado deve ser mínima ou eliminada, como se o mercado funcionasse espontaneamente ou mesmo existisse sem o Estado.

Queremos chamar a atenção para algo que deveria ser óbvio, mas que você não assistirá na TV: 1) não existe mercado sem Estado, portanto, apresentar essas instituições como opostas é um erro primário (mas não ingênuo); 2) políticas que liberalizam o mercado não significam que o Estado diminui, mas que suas prioridades mudam, aumentando determinadas ações em prejuízo de outras.

Simplificadamente, o mercado é um conjunto de relações entre indivíduos que são proprietários de mercadorias e interagem por meio da troca dessas propriedades. Na nossa sociedade, o mercado tem grande peso no processo de produção e distribuição da riqueza. A esmagadora maioria dos indivíduos tem como única propriedade para venda sua capacidade de trabalho, enquanto um percentual pequeno interage no mercado com a propriedade dos meios para a produção da riqueza, sejam terras, imóveis, fábricas, patentes, títulos, ações. 

Acontece que, fora do caos, não existe mercado sem Estado. O Estado é condição necessária para que exista propriedade privada, particularmente a propriedade privada dos meios de produção da riqueza social. Como a chamada sociedade de mercado se baseia na competição entre os indivíduos, só o Estado pode garantir que esses indivíduos vão se relacionar, sem recorrerem à violência sistemática, aceitando as respectivas propriedades. Portanto, a função essencial do Estado, na sociedade atual, é garantir a propriedade privada e, desse modo, a existência do próprio mercado.

Essa função essencial do Estado para a existência do mercado é ainda mais profunda porque a competição ocorre numa estrutura hierarquizada, em que a produção da riqueza se baseia na subordinação entre os indivíduos (trabalhadores e empresários) que só a propriedade privada (por meio do Estado) pode impor. Se alguém não aceita a subordinação e, portanto, a propriedade privada, o Estado impõe a ordem com seus órgãos, como a polícia. 

O que estou falando é muito simples e fácil de comprovar. Faça um teste você mesmo: amanhã, chegue na empresa em que você trabalha e diga ao seu chefe que, em respeito à democracia, vocês farão uma votação para definir a jornada de trabalho e o jeito de organizar a produção na empresa.  Quando seu chefe der risada e te demitir, você dirá que quer continuar trabalhado e que não irá embora.  Assim que ele chamar a polícia e você for expulso da empresa, nunca irá esquecer a relação entre Estado e mercado. Sem Estado, ninguém precisa aceitar receber ordem do outro, nem ver o outro enriquecer por ser dono da empresa. Ou seja, só com propriedade privada, portanto, com Estado, há patrões, empregados e acumulação privada.

Além das hipóteses delirantes, a existência de mercado sem Estado só é possível em situações de caos e violência extrema, como o tráfico de drogas e outros mercados não legalizados. Os indivíduos subordinam uns aos outros e acumulam riqueza na porrada, matando e morrendo. Ainda assim, mesmo nessas situações extremas, os mais fortes criam instituições com funções parecidas às do Estado para ordenar os negócios e viabilizar a existência do mercado. 

Uma versão menos primária de liberalismo econômico admite a necessidade do Estado para a dita sociedade de mercado, e centra seu discurso na demanda por “menos” Estado e mais liberdade para o mercado. Por exemplo, isso é muito comum quando o tema são direitos dos trabalhadores (assim como benefícios sociais, previdência, saúde, etc.). Pede-se que o Estado reduza sua intervenção nas relações entre patrões e empregados. O engodo é que reduzir o direito do trabalho não busca diminuir o Estado, mas apenas deixar os trabalhadores ainda mais fracos frente aos proprietários. O que não se quer são limites ao poder empresarial que o Estado garante. Se a intenção do liberalismo econômico fosse mesmo diminuir o Estado, este deveria não colocar a polícia para encerrar os conflitos coletivos, as disputas por terra, as greves, as ocupações de fábrica.

O Estado continua atuando e garantindo o mercado ao proteger os proprietários, e pode mesmo aumentar sua intervenção, com o reforço das forças de repressão que garantem a ordem. Há tempos, pesquisadores indicam como a redução das políticas de bem-estar social do Estado tem tido como contrapartida o aumento dos seus braços repressivos.

Essa demanda por “menos Estado” é cínica (e irônica) porque a “liberdade” do liberalismo econômico é, na verdade, uma política para fortalecer os mais fortes, protegidos em suas propriedades pelo Estado. É mais poder para quem domina e menos liberdade para a maioria da população, que fica mais subordinada às vontades do “mercado”. Trata-se de uma estratégia em que o dominador se faz de vítima, reclamando do Estado, quando ele é, por definição, o grande beneficiado do papel estatal.

Por qualquer motivo, você pode tomar partido da defesa do poder de mercado, especialmente se você fizer parte da minoria proprietária da população. Mas não caia num simplismo bobo. Estado e mercado estão juntos nessa parada. Como o Estado não é uma instituição imune às pressões sociais, pode atenuar as assimetrias de poder que ele mesmo garante. Mas isso não significa, em qualquer hipótese, sua oposição ao mercado, muito menos que o mercado seja divorciado dele.

*Vitor Filgueiras é membro do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da UFBA. é professor de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-doutorado em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). (2016) Estágio de Pós-doutorado (SOAS, Universidade de Londres, 2015) Doutorado em Ciências Sociais pela UFBA (2012). Mestrado em Ciência Política pela UNICAMP (2008). Graduação em Economia pela UFBA (2005). Secretário da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET). Foi Auditor Fiscal do Ministério do Trabalho entre 2007 e 2017. Organizou o livro Saúde e Segurança do Trabalho no Brasil (2017), dentre outros. Confira o livro clicando aqui

Classificação Indicativa: Livre

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