Economia & Mercado

Estado e Mercado: Senso Comum e Realidade

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Bnews - Divulgação

Publicado em 13/03/2018, às 18h08   Luiz Filgueiras*


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O recente anúncio do governo dos EUA de que irá taxar as suas importações de aço e de alumínio em 25% e 10%, respectivamente, é um bom motivo para se discutir um dos mitos mais arraigados, e perniciosos, presente hegemonicamente na sociedade brasileira, reproduzido incansavelmente pelas grandes corporações midiáticas e seus “especialistas de mercado”, qual seja: a suposta oposição entre Estado e mercado.  

O senso comum quase sempre está errado; mas, paradoxalmente, gruda na forma de pensar dos indivíduos mais do que ostra na pedra. Na verdade, o senso comum é a forma mais eficiente da ideologia (visão social do mundo dominante na sociedade), porque não é percebido enquanto tal; uma crença que se naturaliza como o ato de respirar, a lei da gravidade e a inevitabilidade da morte.

Exemplos de senso comum têm às centenas no nosso cotidiano, mas basta apenas um para se perceber a sua função e o seu poder. Um dia, peguei um taxi para ir trabalhar e, em determinado momento, um acidente entre dois carros paralisou o trânsito; imediatamente, o motorista afirmou convicto: “não vou nem olhar, pode ter certeza que é coisa de mulher”. A mensagem foi clara; “mulher não sabe dirigir e, por isso, é um perigo para o trânsito”. Assim, uma crença social, repetida milhares de vezes, sem qualquer reflexão e nas mais diversas situações, difunde, “comprova” e reproduz a visão social de mundo dominante.

No entanto, na vida real, as empresas seguradoras de automóveis sabem que a probabilidade estatística das mulheres se envolverem em acidentes de trânsito é muito menor do que a dos homens; e que, por isso, se beneficiam de um preço menor para a contratação de um seguro - considerando-se semelhantes as demais condições entre ambos. Aviso importante: uma empresa capitalista, como uma seguradora, não rasga dinheiro.

No que se refere à relação Estado-mercado, instituições fundamentais do capitalismo, existe a seguinte crença: 1- O Estado é uma instituição autônoma, apartada e acima da sociedade (e do mercado) que, quando “interfere na economia”, atrapalha e prejudica o seu bom funcionamento; portanto, Estado e mercado são duas instituições independentes entre si, que não se misturam (como a água e o óleo) ou que não devem se misturar. 2- O Estado é, por definição, ineficiente e incompetente, enquanto o mercado (o setor privado) é eficiente, tem capacidade de se autorregular e consegue atingir o melhor resultado possível para todos. 3- Os países considerados desenvolvidos chegaram a essa situação praticando o “livre-mercado”, sem participação do Estado na economia; portanto o “livre-mercado” é condição necessária e suficiente para uma economia capitalista se desenvolver. 

Em suma, segundo esse senso comum, o Estado representa todos os males, enquanto o mercado sintetiza todas as virtudes. A corrupção, por exemplo, é um fenômeno inerente ao Estado; enquanto o mercado funciona pela meritocracia. Essa crença deriva de uma visão de mundo liberal, que postula a existência de uma “ordem natural”, representada pelo mercado - que organiza e subordina a sociedade de acordo com suas leis (naturais). Contudo, o que a experiência histórica acerca do desenvolvimento capitalista nos informa, de fato? 

Em primeiro lugar, que o capitalismo (e seus mercados) se constituiu no processo de criação dos Estados Nacionais entre os séculos XVI e XVIII; que, portanto, Estado e mercado são instituições sociais ligadas organicamente desde as suas origens, duas faces de uma mesma moeda, que não podem ser separadas. Poder político e poder econômico estão entrelaçados estruturalmente; nenhum país dito desenvolvido prescindiu do Estado como suporte fundamental do desenvolvimento capitalista: protecionismo, subsídios, guerras econômicas, políticas industriais-comerciais-tecnológicas, compras governamentais e, em muitos casos, produção direta de bens e serviços foram instrumentos decisivos postos em prática a partir da ação do Estado. Essa é a história factual de países como Inglaterra, EUA, Alemanha, Japão e França; e, mais recentemente, a Coreia do Sul e a China.

O processo contemporâneo de globalização e hegemonia neoliberal acrescentou novos instrumentos aos já existentes. O discurso do livre-mercado utilizado pelos países dominantes, e nunca praticado, tem função politico-ideológica de disciplinamento, contenção e subordinação dos países periféricos. O que saiu na frente “chuta a escada”, impedindo que os demais subam: “façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço”: a recente decisão de Trump de taxar as importações de aço e alumínio, embora fora de moda, fala por si mesma. Essa é “a história do capitalismo, de como ele é e não de como eu acho que deveria ser”.

Não há economia capitalista forte sem Estado forte. A atual fronteira do desenvolvimento capitalista, a chamada “economia do conhecimento”, tem os EUA como o seu principal protagonista, isto é, o seu Estado e as suas multinacionais - que conseguiram impor ao resto do mundo um novo tipo de protecionismo, denominado de Direito de Propriedade Intelectual, através do chamado acordo TRIPS: regras produzidas para os EUA e que se transformaram, aos poucos, em regras de caráter mundial, que dificultam ou mesmo impedem o acesso dos países subdesenvolvidos ao conhecimento e à tecnologia de ponta. 

Quanto à eficiência e meritocracia dos mercados, a história também nos ensina que as duas maiores crises do capitalismo (1929 e 2007), de âmbito mundial, ocorreram exatamente em momentos nos quais a ideologia do livre-mercado prevaleceu na condução da economia e do Estado - ambas levando à destruição de forças produtivas e consequências sociais dramáticas. A última trouxe à luz a existência de corrupção generalizada (sistêmica) nos mercados financeiros dos EUA e na sua relação com as instituições do governo. 

Por fim, a história também evidencia que a concentração da renda e da riqueza nas mãos de poucos é uma tendência inerente ao funcionamento de uma economia capitalista; nos países desenvolvidos, o único período em que ela foi revertida parcial e temporariamente foi entre o fim da 2ª Guerra Mundial e os meados dos anos 1970 - através da ação política da sociedade, das instituições e do Estado. Após esse período, com a hegemonia do capital financeiro e da ideologia e políticas neoliberais, essa tendência voltou com toda a força; todos os dados e informações existentes sobre distribuição de renda evidenciam isso.

Lição definitiva da história: a relação Estado-mercado no capitalismo, em qualquer época e lugar, não se reduz a “mais ou menos Estado”, mas tem a ver com quem (classes, frações de classe e grupos sociais) controla e direciona o Estado, e com que objetivos e interesses. 

Luiz Filgueiras — Membro do Núcleo de Estudos Conjunturais da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (NEC/UFBA). Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Doutor em Teoria Econômica pela UNICAMP e Pós-Doutorado em Política Econômica pela Universidade Paris XIII. Autor do livro “História do Plano Real” (Editora Boitempo: 2000, São Paulo; última edição em 2016) e coautor do livro “Economia Política do Governo Lula” (Editora Contraponto: 2007, RJ).


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