Saúde

Brasil desperdiça 18 milhões de litros de sangue ao ano por preconceito

Publicado em 18/06/2017, às 22h59   Redação BNews


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Se Marcel Proust, Alan Turing, Andy Warhol, Kevin Spacey, Mario de Andrade, Marco Nanini ou Elton John fossem doar sangue em um hemocentro brasileiro, eles seriam barrados pelo mesmo motivo: manter relações sexuais com homens. No Brasil, homens homossexuais só podem fazer doação sanguínea se passarem um ano sem transar com outro homem. A restrição representa um desfalque considerável nos estoques de sangue.

De acoreo com matéria da Superinteressante, em 2014, apenas 1,8% da população brasileira doou 3,7 milhões de bolsas. É bastante sangue, mas é pouca gente – ideal da ONU é que 3 a 5% da população de uma nação seja doadora. Mas só conseguiríamos chegar nesse ideal de 3% se o número de brasileiros que vão regularmente aos hemocentros dobrasse. Ainda é pouco.

E tem muita gente que quer engordar essa pequena parcela de voluntários. De acordo com o IBGE, 101 milhões de homens vivem no país e, do total, 10,5 milhões é homo ou bissexual. Levando em consideração que cada homem pode doar até quatro vezes em um ano, com a restrição dessa parcela da população, são desperdiçados 18,9 milhões de litros de sangue por ano.

Para o Ministério da Saúde, os 12 meses de abstinência sexual fazem parte de um conjunto de regras sanitárias para proteger quem vai receber a transfusão de possíveis infecções – até 2004, homens que fazem sexo com homens (HSH) eram proibidos de doar sangue. A Portaria nº 2712, de 12 de novembro de 2013, segue a recomendação da Organização Mundial da Saúde(OMS) e da Organização Pan-Americana de Saúde(OPAS) sobre a restrição de HSH, de que todas as amostras de sangue sejam analisadas e de que os doadores sejam de baixo risco. O Ministério e a Anvisa afirmam que orientação sexual não deve ser usada como critério para seleção de doadores e que as regras não são discriminatórias. Mas a realidade dos hemocentros não é bem assim.

Em 2014, o tio do jornalista João Teixeira* estava internado na UTI do Hospital 9 de julho, em São Paulo, e a família foi procurada para doar sangue. João, doador frequente desde os 17 anos, foi o único barrado no momento da entrevista. Ao responder que mantinha relações sexuais com homens, a médica disse que o sangue não seria aceito pelo fato dele ser gay. Perplexo, explicou que estava em um relacionamento sério há mais de um ano e que sempre usava preservativo. A resposta foi estarrecedora: “Você é uma exceção entre os gays, a maioria é promíscua e se você estivesse doente, também não ia querer um sangue ruim”. Desde então, João nunca mais doou sangue.

O designer Alexandre Macedo, de 42 anos, passou por uma situação parecida. Tentou doar sangue a pedido do Hospital Doutor Arthur Ribeiro de Saboya, no bairro paulistano Jabaquara, em retribuição aos cuidados que sua mãe recebera enquanto estivera na UTI. Alexandre, que estava em um relacionamento monogâmico há mais de 10 anos, ouviu que não estava qualificado por ser gay e não poder doar. “Sou um ótimo candidato: tenho peso, altura, boa saúde, não tenho tatuagens, piercings, fui cobaia de testes do PREP (medicamento de  profilaxia pré-exposição ao HIV) há 5 anos no Hospital das Clínicas, sou doador universal. É muito decepcionante saber que estou apto e que por uma regra que leva em consideração quem você transa, não poder mais “, afirma. Ele conta que esse foi o primeiro episódio direto de preconceito que sentiu na vida. Desde então, Alexandre nunca mais doou sangue.

Outro forte candidato à doação é Alexandre Salomão, de 40 anos. Por também ser doador universal e estar com o mesmo parceiro há mais de 12 meses, o publicitário atendeu ao pedido de um banco de sangue que estava com os estoques baixos, mas durante a triagem foi considerado inapto. Salomão acredita que a restrição é tosca, ultrapassada e que sua orientação sexual foi tratada como no auge da aids nos anos 1980 – como um “câncer gay”.  Ele conta que muitos de seus amigos omitem que mantém relações homossexuais para conseguir doar. “O gay é obrigado a mentir a vida inteira. Mente para os amigos, mente no trabalho, mente para família. É injusto ter que passar por isso e mentir para um desconhecido sobre a orientação sexual, ainda mais por uma causa tão nobre quanto a doação de sangue. Não quero mais mentir”. Desde então, Salomão nunca mais doou sangue.

Ao contrário de João e dos dois Alexandres, Vinícius De Vita, de 22 anos, estava solteiro quando foi ao banco de sangue. O estudante foi impedido de doar com a justificativa de que teve relações sexuais com mais de três parceiros no último ano. Ele estava acompanhado de uma amiga e um amigo, ambos solteiros e heterossexuais, que também tiveram mais de três parceiros nos 12 meses anteriores à doação. Os dois puderam doar, Vinícius não. “Entendo a questão da janela imunológica e acredito que não se pode ignorar que temos riscos maiores para várias DTSs. Mas não é apenas proibindo a doação que se resolve o problema. Falei que era gay e me olharam com desconfiança, me senti mal, mega estigmatizado”. Desde então, Vinícius nunca mais doou sangue.

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