Política

Descortinando a PEC 241/2016

Publicado em 18/10/2016, às 21h44   Janina Schuenck



A PEC 241/2016 vem ocupando grande espaço nas discussões do país, e não sem razão dadas as graves implicações que propõe à nação para as duas próximas décadas. Inaugurando “novo regime fiscal”, prevê a alteração para os próximos 20 anos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (!), o que por si só traz questionamento: inovar as normas que deveriam ser transitórias desde a promulgação da Constituição Federal há 28 anos, estendendo seus dispositivos transitórios até os seus 48 anos de idade? 

Inquestionável o período de crise econômica e a necessidade de mudança de posturas para que a economia brasileira volte a crescer, mas medidas de gestão econômica para enfrentamento da crise demandariam alteração constitucional? E do ADCT? Nenhum dos 88 países objeto de estudo do FMI publicado em 2015 imobilizou gastos por meio de emenda constitucional, nem por tanto tempo, o que rememorou aos professores da FGV José Roberto Afonso e Felipe Salto, em trabalho conjunto com o analista do Senado Federal Leonardo Ribeiro, ser o Brasil o país da jabuticaba (em “A PEC do teto e o resto do mundo”).

Os argumentos invocados na PEC tentam justificar a proposta em diplomas normativos que já existem, a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), esta sim instrumento infraconstitucional de vigência mais razoável (2 anos) e adequado às mudanças econômicas, além de circunscrito à cada gestão. A LDO, juntamente com a Lei de  Responsabilidade Fiscal e os dispositivos constitucionais atuais, possibilita o controle de gastos respeitando a separação dos poderes e a independência e autonomia das Instituições.

Também ímpar é o prazo atribuído às medidas: 20 anos de vínculo de gastos ao IPCA, independente de qual será o desempenho da economia. Ora, se há gastos a cortar e se faz imperioso economizar, o que justifica limitar aos próximos governos o que lhes será basilar: gerir? A PEC, de forma inconstitucional, como delineadamente explicado da Nota Técnica da Secretaria de Relações Institucionais da Procuradoria Geral da República, subtrai dos próximos gestores públicos a capacidade plena de gestão, ainda que a crise se esvaia. Impõe um teto de gastos por 20 anos nas atividades finalísticas do Estado, mesmo que superada a crise e obtida vultosa economia de recursos. E mais: a proposta do Poder Executivo ultrapassa sua seara e invade a independência e a autonomia administrativa e financeira de outras instituições, inclusive do Ministério Público, do Judiciário e do Legislativo, e prevê eventual alteração em 10 anos apenas por iniciativa da Presidência da República (artigo 103).

Vale destacar que a EMI 83/2016 (Exposição de Motivos Interministerial) que apresenta a PEC afirma que se busca evitar a “expansão acelerada do gasto durante momentos positivos do ciclo econômico”. Ora, qual a real intenção da PEC? Enfrentar a crise ou conter gastos mesmo se a economia estiver com desempenho positivo? É preciso transparência e coerência entre o que se invoca como causa à necessidade da PEC e o que se propõe com a mesma.

Em sua exposição de motivos, a PEC 241 fala ainda em busca por “mudança de rumo das contas públicas”, assinalando que a Dívida Bruta do Governo Geral aumentou de 51,7% do PIB em 2013 para 67,5% do PIB em abril de 2016, e que a despesa pública primária teria crescido muito acima da inflação (mas sem simetria dos períodos apontados). Não menciona, todavia, a conclusão de estudo do próprio Ministério da Fazenda de que houve controle das despesas primárias de 2011 a 2015, com queda da sua taxa real de crescimento (em “Relatório de análise econômica dos gastos públicos federais. Evolução dos gastos públicos federais no Brasil. Uma análise para o período 2006-15”).

Não menciona sequer, e deveria, por uma questão de transparência, que a Dívida Bruta do Estado Geral (cujo crescimento é invocado como argumento para a PEC) não envolve apenas as despesas primárias, mas também as despesas financeiras, que representam, aliás, parcela significativa da dívida, dentre as quais aquelas correspondentes à emissão de Títulos do Tesouro Nacional (com que o governo consegue dinheiro em curto prazo, mas por um preço alto) e outras atividades correlatas ao mercado financeiro.

Aqui vale destacar a análise feita por Daro Piffer, Secretário-geral do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (FONACATE) e presidente do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central, apontando que “um simples aumento de um ponto percentual na taxa Selic, por exemplo, provoca um custo fiscal entre R$ 15 bilhões e R$ 20 bilhões (em “O xis da questão do teto dos gastos públicos”). Lembra ainda que “as despesas com juros acumuladas, de junho de 2014 a junho de 2015 foram na ordem de R$ 420 bilhões. Nada menos de 45% do orçamento da União é para a rolagem da dívida e o pagamento dos juros”.

Se a Dívida Bruta do Governo Geral envolve tanto despesas primárias quanto despesas financeiras, por que o pagamento de juros e outras despesas financeiras ficarão imunes ao “novo regime fiscal”? Pior, ausência de teto para os juros mas economizar apenas nas atividades-fim do Estado? Chama a atenção a afirmação na EMI (Exposição de Motivos Interministerial) de que a PEC visa “fortalecer a confiança dos agentes econômicos e reduzir o risco-país”.  Seria esse um objetivo mais importante que a garantia dos direitos fundamentais, previstos na nossa Constituição Cidadã? Como brilhantemente apontado no documento conjunto “Inconstitucionalidade do Congelamento dos Pisos da Saúde e da Educação na PEC 241/2016”, subscrito, dentre outros, pela Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP, Grupo Nacional de Direitos Humanos do CNPG, pela Pastoral da Saúde da CNBB, pela Procuradoria Geral dos Direitos do MPF, e por instituições e personalidades da área jurídica e da área de saúde: “Não cabe impor, via ADCT,  uma espécie de ‘estado de sítio fiscal’ que suspenda a eficácia dos direitos fundamentais por 20 (vinte) anos”.

A sociedade brasileira não precisa e não merece que os gastos mínimos com saúde e educação passem a ser atrelados ao IPCA, com desvinculação ao crescimento da economia nos próximos 20 anos. Os gastos mínimos em saúde e educação foram verdadeiros avanços, garantia de um montante mínimo de investimentos, e sabemos que pouquíssimas unidades da Federação aplicam mais que o mínimo. Sua redução, muito embora não imponha um teto, repercutirá fatalmente na redução dos investimentos em saúde e educação para a sociedade. Não podemos admitir retrocesso na garantia de direitos fundamentais.

Segundo o gráfico com o histórico de aplicação em “Ações e Serviços Públicos de Saúde da União”, divulgado no site do IPEA após a surpreendente exoneração de sua Coordenadora de Estudos, em nenhum dos anos entre 2010 e 2015 houve investimentos em saúde que ultrapassassem 2% dos gastos mínimos. Ou seja, estamos falando de áreas em que na prática atingir o mínimo é considerado o cumprimento da obrigação e não se vai muito além. Será esse mínimo à saúde e educação balizado pela inflação, sem crescimento real. O que esperar do congelamento dos gastos mínimos em áreas que clamam por melhorias com o aumento natural das demandas do SUS em razão do envelhecimento da população brasileira?

O Conselho Deliberativo da FIOCRUZ, em “Carta sobre a PEC 241 e os impactos sobre os direitos sociais, a saúde e a vida”, ao lembrar do efeito multiplicador do investimento em saúde (cada R$1,00 gasto representa o incremento de R$ 1,7 no PIB), denuncia que a PEC trará impactos diretos no controle da AIDS, na realização de transplantes, no acesso a medicamentos, e na vigilância à saúde e controle de epidemias, como a Zika, e enfatiza que a  PEC 241 traz como “forma exclusiva de enfrentar a crise fiscal o corte de gastos sociais e, portanto, a restrição de direitos, mantendo ao mesmo tempo intocado o questionamento sobre a dívida pública e seu regime de juros que representam, estes sim, a razão maior do comprometimento da União.”

A então Coordenadora de Estudos do IPEA, doutora em saúde coletiva, Fabíola Vieira, em trabalho conjunto com Rodrigo Benevides, economista e mestre em saúde coletiva, apresentou Nota Técnica com projeção das perdas nos gastos mínimos com saúde caso a PEC 241 tivesse vigência desde 2003, a partir da correção apenas pelo IPCA: teriam sido R$ 257 bilhões a menos, ou 42,1%, em 13 anos (de 2003 a 2016). Considerando que entre os anos de 2010 a 2015 não houve exercício em que os investimentos em saúde tenham ultrapassado 2% dos gastos mínimos, segundo o próprio IPEA, não há como negar o profundo impacto negativo da PEC à saúde pública brasileira.

Da mesma forma o COFECON (Conselho Federal de Economia) se posicionou contra a PEC 241, porque ela parte de falso diagnóstico, omitindo que“80% do déficit nominal é causado com gastos com juros da dívida pública”, omitindo também “as excessivas renúncias fiscais, o baixo nível de combate à sonegação fiscal e o elevado grau de corrupção.”

Pois bem, não se pode olvidar a quantia de dinheiro desperdiçada em práticas corruptas, que oneram os cofres públicos e aumentam o aludido “risco-país”. São bilhões recuperados em operações diversas do Ministério Público e Polícia, como a Lava Jato e a Zelotes, dentre outras. As instituições que atuam no combate à corrupção e fiscalizam os gastos públicos também terão limitações orçamentárias que as impedirão de se fortalecer e disseminar ainda mais o cerco contra a corrupção.

Para se ter ideia do impacto prático da PEC, o pesquisador associado da FGV/IBRE, Bráulio Borges, destacou que se a PEC 241 estivesse em vigor desde 1998 e o salário mínimo fosse corrigido apenas pelo IPCA seu valor atual seria de R$ 400,00, e não os atuais R$ 880,00 (registrando que o valor do salário mínimo repercute imediatamente nos gastos do governo). Cumpre frisar que o Deputado relator acrescentou às vedações previstas na PEC o reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação (art. 104, VIII), texto aprovado em primeiro turno na Câmara dos Deputados.

O cidadão deve se atentar à PEC 241/2016, ler a proposta e os estudos feitos sobre os impactos decorrentes de sua aplicação. Não se trata, como se quer fazer pensar, de disputa político partidária, tampouco de luta corporativista. Esses são argumentos rasos para tentar evitar uma análise aprofundada da PEC. A 241 afetará a vida de todos os brasileiros pelos próximos 20 anos, trazendo contingenciamento dos serviços essenciais do Estado ainda que economia se recupere e volte a crescer.

Ao congelar os gastos nos patamares atuais, a 241 sequer faz justiça às instituições que vem “fazendo o dever de casa” e buscando economizar. Quem está gastando menos, ficará fadado a investir menos pelos próximos 20 anos. Quem gasta mais, continuará a ser responsável pelos maiores gastos. A PEC traz expressas vedações à admissão de pessoal, de maneira que as desigualdades entre os diversos Estados da Federação tendem a se perpetuar. Aqueles com menor número de médicos, professores, juízes, promotores de Justiça, continuarão a ser os Estados com pior número de profissionais nos próximos 20 anos, sem qualquer estudo social ou econômico sobre o crescimento e o envelhecimento local da população.

E mais: nos termos do substitutivo apresentado pelo relator e aprovado em primeiro turno na Câmara dos Deputados, as vedações em caso de descumprimento dos limites não serão restritas ao órgão que os descumpriu, mas a todos os órgãos que integram o Poder a que pertença. “A punição extensiva a todo o Poder, diante do cumprimento do limite por um órgão … estabelece uma responsabilidade solidária entre os órgãos do Poder no cumprimento dos seus limites”, nas justificativas apresentadas no relatório. Ora, a PEC fala em economizar mas quer solidarizar responsabilidades, punindo até mesmo aqueles que tenham obedecido os limites de gastos, o que, a um só tempo, afronta a autonomia das Instituições e asfixia injustamente aquelas que economizaram, aplicando-lhe, indiscriminadamente vedações que não seriam pertinentes.

Aliás, chama a atenção que a PEC estabeleça vedações que restringem a prestação de serviços essenciais à população, mas exclua expressamente de tais vedações os gastos para aumentar o capital de empresas estatais não dependentes. Tampouco arrola nas vedações o fim dos gastos com publicidade e propaganda, nem faz referência a gastos com encargos financeiros. Qual a prioridade ao país? O Brasil, talhado pela Constituição Cidadã de 1988, não pode fugir dos objetivos fundamentais da República, nem se furtar à garantia dos direitos e garantias fundamentais. Tampouco pode estagnar seu funcionamento 20 anos doravante.

É claro que todos querem o fim da crise; é indiscutível que é preciso economizar, mas vamos começar por onde, como e por quanto tempo? O instrumento adequado seria uma alteração constitucional? As restrições terão vigência mesmo que resolvida a crise e para que o dinheiro economizado seja gasto com o quê? Por que não economizar com as despesas financeiras, que inflacionam a chamada Dívida Bruta do Governo Geral?

É preciso cuidado com a publicidade que quer simplificar a PEC, cuidado com as ementas e apelidos que camuflam o real impacto da proposta, cuidado com as tentativas de polarização que subtraem o aprofundamento da análise da PEC. O que está em jogo é o país que esperamos para os próximos 20 anos, a prestação de serviços essenciais, a manutenção do combate à corrupção que tanta sangria traz ao país, a fiscalização dos gastos públicos.  Para um paciente enfermo, a PEC não é um simples remédio amargo, é verdadeira amputação dos pés como se fosse a solução às feridas ao caminhar.

Classificação Indicativa: Livre

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