Cultura

Novembro Negro: Entenda a importância do Dia da Consciência Negra e conheça a História

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O BNews conversou com doutor em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Itan Cruz  |   Bnews - Divulgação Jefferson Peixoto / Secom
Edvaldo Sales

por Edvaldo Sales

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Publicado em 20/11/2022, às 05h00 - Atualizado às 10h00



Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o BNews conversou com o doutor em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, Itan Cruz, para falar sobre essa data que é extremamente relevante para toda a população preta e que marca o dia da morte de Zumbi dos Palmares, líder do quilombo dos Palmares que foi assassinado por representantes da Coroa Portuguesa, em 1695.

Itan Cruz
Itan Cruz é doutor em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros - Foto: Jorge Cosme

Autor do livro ‘Jogo de damas: Amanda Paranaguá – memória, baianismo e poder na corte do Brasil e além’, Itan falou sobre a escolha desta data, a importância dela e pontuou os impactos e relevância desse dia para as novas e futuras gerações.  

Os impactos são muitos e diversos. Sobretudo a construção, consolidação e reafirmação da autoestima das pessoas negras. E autoestima não somente no sentido estrito da palavra, voltada para o sentir-se bonito ou bonita, mas também no sentido de se reconhecer como protagonista, como agente capaz, transformador e transformadora de sua própria história e da História do nosso país”, destacou o historiador.

Confira a entrevista completa:

BNews: Para iniciarmos, quero que você fale como foi criado o Dia da Consciência Negra?

Itan Cruz: O dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares (1655-1695), surgiu como uma alternativa às comemorações do 13 de maio para um grupo de jovens negros gaúchos, que compuseram o Grupo Palmares, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no começo da década de 1970. A ideia era celebrar a Consciência Negra no dia em que Zumbi, uma emblemática liderança preta do Brasil Colônia, foi assassinado por aspirar uma sociedade independente do domínio branco europeu.

Desta maneira, a data estaria envolta às ideias de liberdade de uma figura negra e não vinculada à imagem da princesa Isabel, que tomou centralidade nos discursos e antigas obras historiográficas principalmente a partir das produções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Instituição criada ainda no Império, em 1838, o IHGB se constituiu como o principal centro de difusão da historiografia nacional até pelo menos 1930, preservando fortes laços com a monarquia dos quais derivou a princesa como principal responsável pelo 13 de maio.

No entanto, esta proposta monarquista não foi instituída sem disputas e questionamentos. Desde 1888 a população negra tem reivindicado seu protagonismo na conquista da Abolição da escravidão. Desde indivíduos anônimos, que compuseram irmandades negras, outros que empreenderam fugas, reagiram à violência de senhores e feitores e negociaram suas alforrias, até personalidades mais conhecidas, a exemplo do engenheiro André Rebouças, do jornalista José do Patrocínio, do rábula Luiz Gama, etc., é sensível o papel central da população negra na conquista da liberdade e na extinção legal da escravidão no Brasil. Por isso, hoje, além da manutenção e consolidação das comemorações do 20 de novembro, instituído nacionalmente desde 2011, há um forte movimento de reintegrar o 13 de maio como uma data também protagonizada pela população negra em busca de liberdade e melhores condições de vida numa sociedade sem racismo.

BNews: Por que o dia 20 de novembro?

Itan Cruz: O dia 20 de novembro, como já mencionado, faz referência ao dia em que Zumbi, líder do quilombo dos Palmares, foi assassinado por representantes da Coroa Portuguesa, em 1695. Palmares foi um conjunto de povoações formadas por negros fugidos e livres de diferentes etnias, além de indígenas e alguns brancos pobres, e se localizou onde hoje é o atual estado de Alagoas. Zumbi e seu quilombo representavam uma ameaça ao projeto colonizador e escravocrata dos portugueses, na medida em que propunham um outro modo de organização política, onde africanos e seus descendentes poderiam ocupar postos de decisão e poder sem maiores dificuldades. Por isso o quilombo dos Palmares foi alvo de diversas operações militares que procuraram desarticulá-lo e massacrá-lo.

BNews: O apagamento da trajetória de pessoas pretas na história contribuiu para a criação do Dia da Consciência Negra?

Itan Cruz: Eu diria que foi justamente o fracasso desta política de esquecimento das pessoas pretas que possibilitou a criação do Dia da Consciência Negra. O movimento negro, de uma maneira mais ampla, isto é, irmandades religiosas, sindicatos – que, no Brasil, sempre tiveram uma marcante presença de trabalhadoras negras e trabalhadores negros –, além de outras formas de organizações políticas e civis, a exemplo da Frente Negra e da União dos Homens de Cor, demarcaram constantemente a presença da população negra na história da luta por direitos.  

Há séculos essa posição de resistência do povo preto vem contrariando o projeto de esquecimento tecido pelas elites brancas de um país que procura reelaborar, constantemente, a herança de um passado escravocrata. Um exemplo atual desta empreitada contra o esquecimento é a Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros criada em 2015 e que tem atuado significativamente para evidenciar indivíduos negros de diferentes contextos históricos, nacionalidades, etnias, classes sociais, gêneros, orientações sexuais, religiosidades, etc. Por se tratar de pesquisadoras negras e pesquisadores negros – de diversas partes do Brasil e de variadas instituições nacionais e internacionais – produzindo História, a Rede se insere neste processo histórico contra o esquecimento da população preta não só por trazer à público nomes de pessoas negras esquecidas, mas por estes nomes esquecidos serem trazidos à público por mãos igualmente negras.

BNews: Qual a relevância dessa data para a comunidade preta e na luta contra o racismo?

Itan Cruz: Essa data é extremamente relevante para toda a população negra, no sentido de questionarmos a sociedade que temos e a sociedade que desejamos ter. São muitas as nossas conquistas ao longo de séculos deste lado do Atlântico, mas há muito ainda a ser feito. Ainda somos os mais pobres, os que mais morrem nas filas dos hospitais ou pela mão armada do Estado; também somos a maioria dos que trabalham sem carteira assinada, os que mais lotam os presídios e os que menos participam de lugares de liderança. Esta data também deve servir às pessoas brancas para a reflexão sobre o papel delas nesta luta por uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária. “Não basta não ser racista”, como afirma Angela Davis, “é preciso ser antirracista”. O combate ao racismo perpassa não só a população negra, mas também ao compromisso que as pessoas brancas devem assumir para a extinção desta estrutura social calcada na desigualdade de oportunidades da qual elas são direta ou indiretamente privilegiadas.

BNews: Na sua visão, qual o impacto do Dia da Consciência Negra nas novas e futuras gerações?

Itan Cruz: Os impactos são muitos e diversos. Sobretudo a construção, consolidação e reafirmação da autoestima das pessoas negras. E autoestima não somente no sentido estrito da palavra, voltada para o sentir-se bonito ou bonita, mas também no sentido de se reconhecer como protagonista, como agente capaz, transformador e transformadora de sua própria história e da História do nosso país. Dando seguimento a um processo longo, difícil e doloroso de conquistas, hoje podemos encontrar – ainda que em número insuficiente – pessoas negras em lugares que antes não existíamos ou éramos ainda menos representados. Na TV, nos cinemas, nas revistas, na música, no Parlamento, nas editoras, nas universidades, nos laboratórios, e outros espaços notáveis, a presença negra pode ser notada, mas ainda é uma representação insuficiente em se tratando de um país com 54% da população negra, segundo IBGE.   

BNews: Como você avalia a pergunta “Se existe o dia da consciência negra, então por que não existe o dia da consciência branca?”

Itan Cruz: Esta pergunta soa com certa desonestidade porque ignora as desigualdades do nosso país – que são norteadas pela cor da pele – e nega a própria estrutura do racismo no Brasil. Comprovado estatisticamente, somos nós negras e negros que ganhamos menos, que vivemos menos, que mais passamos fome, que menos entramos nas universidades e que menos ocupamos postos de liderança. Esta pergunta sobre uma “consciência branca” ou “consciência humana” ignora todos estes dados e procura pintar a sociedade brasileira com as cores de uma falsa igualdade. É justamente para denunciar as desigualdades que existe não só o Dia da Consciência Negra, mas o Dia Internacional das Mulheres (8 de março), o Dia Internacional da Trabalhadora e do Trabalhador (1º de maio), o Dia dos Povos Indígenas (9 de agosto), o Dia Internacional das Mulheres Negras, Latino-Americanas e Caribenhas (25 de julho), etc. Uma data celebrativa é, antes de mais nada, uma data política, que propõe a reflexão e nos convida para a construção de um mundo melhor.

BNews: Para finalizar, gostaria que você listasse algumas personalidades negras brasileiras que, na sua opinião, foram/são essenciais na luta antirracista.

Itan Cruz: Esta é uma tarefa muito difícil, porque são inúmeras as personalidades negras brasileiras essenciais na luta antirracista. Mas vou me arriscar citando alguns na esperança de que a leitora e o leitor que chegaram até aqui possam sentirem-se provocados a procurar não só os nomes que virão a seguir, mas a buscar outros tantos que compõem a nossa luta.

Peço licença para começar por Luiz Gama (1830-1882), que nasceu livre em Salvador, em 1830, e foi vendido como escravizado para a então província de São Paulo, onde conseguiu provar sua condição de livre e atuou como rábula – uma espécie de advogado sem o curso formal de Direito – na libertação de muitos escravizados de seu tempo. O jornalista fluminense José do Patrocínio (1853-1905) é, certamente, outro nome de peso na luta antirracista. Patrocínio chefiou jornais importantíssimos no Rio de Janeiro, nos anos finais da abolição da escravidão, militando em favor não só da liberdade imediata da população escravizada, como também no sentido do Estado brasileiro providenciar medidas que garantissem o exercício da cidadania pelas pessoas libertas. Pela impossibilidade de me aprofundar sobre todos, mas contando com a providencial curiosidade da leitora e do leitor, cito também Maria Firmina dos Reis, Manuel Querino, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Adbias do Nascimento, Elza Soares, Beatriz do Nascimento, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, dentre muitas outras personalidades marcantes em todo este processo de lutas.

Classificação Indicativa: Livre

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