Artigo

A apropriação da beleza destruirá o mundo

Publicado em 19/04/2017, às 22h17   Bernardo Lima


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Joseph Frank, um dos mais respeitados estudiosos de Dostoiévski (Dostoevski: a writer in his time), indica que o personagem a quem é atribuída a frase "a beleza salvará o mundo" - o ingênuo e altruísta Príncipe Myshkin, protagonista da novela O Idiota - foi construído para ser o modelo de ser humano perfeito - segundo alguns, uma mescla de Jesus Cristo com Don Quixote.

O fim da novela, entretanto, não permite concluir que a beleza salvou o mundo. Ao contrário, o que se percebe é que o homem perfeito nem consegue reverter os males da vida mundana em direção à luz divina, nem consegue, pela apreciação da beleza - duas belas mulheres captam sua atenção - atingir a felicidade.

É certo que a cultura - dimensionada amplamente - é um instrumento de transformação. Mas se engana - quem defende que ela se trata de um instrumento apolítico. É simplesmente impossível uma renovação cultural dissociada de renovação política ou dissociada de uma alteração na conformação econômica da sociedade, porque os processos culturais são simultâneos aos processos políticos e econômicos.

A arte sacra, por exemplo, mostra a História, não é apenas uma manifestação pura de perseguição do belo, da verdade ou da bondade. É também uma manifestação artística com propósitos políticos claros e financiada por um sistema econômico em coordenação com esses propósitos.

Exatamente por falta da compreensão dessa articulação simultânea de processos, é possível, recorrentemente, observar o uso do adjetivo "ideológico" como algo pejorativo, nefasto, quando, em realidade, o seu significado guarda apenas vinculação com a percepção de que existe mais de uma forma possível de exergar o mundo - e, portanto, de identificar que o é bom, belo e verdadeiro.

O discurso da desvinculação político-ideológica - que parece subsidiar projeto de Lei Municipal que impõe "multa para pichadores" - tem dois objetivos claros: o primeiro, de encobrir uma ideologia, por vezes menos palatável a um eleitorado pouco simpático às ideias eventualmente por ela propaladas, com o emprego de expressões difusas e descontextualizadas ("verdade", "beleza", "em favor do Brasil", "em favor da Bahia", por exemplo); o segundo, o da apropriação dessas expressões difusas e descontextualizadas para, em um ambiente democrático, caracterizado pela dialética e pela participação coletiva, abrir margem a um decisionismo unilateral.

Compõe a identidade de Salvador o seu caráter multicultural. Pretender a proteção da beleza a partir apenas de parâmetros cristãos/ocidentais (seja lá o que isso queira significar exatamente) é virar as costas à sua história e à sua memória. A apropriação da beleza, por quem quer que seja, destruirá o mundo, porque sempre provocará ódio e revolta. Não é isso o que o Príncipe Myshkin tentou fazer. A beleza não é de ninguém. A beleza é de todo mundo.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e Advogado.

Classificação Indicativa: Livre

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